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29.3.08

Resposta a Marla

Querida Marla,

Minha casa de dentro transpôs os limites de minha pele, meus poros e me represou; caçadora me tornou presa, refém.

Porque tola, porque fraca, porque amando ainda as dores do amor que não é mais, que nunca foi, que nunca fui.

Porque é fácil, porque louvo o passado, temerosa do porvir.

Mas minha casa de dentro ainda tem cantos a decorar. Janelas a descortinar. Então me entrego entorpecida ao desperdiçar do tempo com essa tarefa estéril.

Quando as cortinas estiverem lavadas e a mesa posta, trago os explosivos, acendo na base da estrutura e saio, nua, rumo ao dia de amanhã.

Momentos Críticos na Futilidade do Salão

Entre o pé e a depilação, abro uma Cláudia (Uma, Marie Claire ou qualquer bosta que o valha).

Já começa mal, porque de cara tem uma carta de Fernanda Young (Oh, God!) para o Ano Novo - a revista é de novembro ou dezembro de 2007.

Aí vejo que tem uma matéria de Kika Seixas(como?) sobre o Mal de Alzheimer e como ele serviu de "acerto de contas" entre ela e sua mãe.

Putz, claro, matéria para vender o livro, aproveitam-se 10 frases no máximo. Mas nessas 10 frases, esqueço o "target" da revista, perfil de anunciantes e o título de escritora de Kika Seixas (ok, amanhã irei numa livraria. E juro, sem deboche, que se encontrar um livro dela e for bom... cara, vou ganhar o fim de semana. e vou ler). Esqueço tudo isso e, pensando em minha avó, me atenho ao trecho em que ela fala sobre o ódio, a raiva, os sentimentos baixos que o Alzheimer provoca em familiares e amigos próximos do doente.

Identificação pura.

Minha avó não tem Alzheimer - ate onde eu sei. Mas aos 95, o processo de degeneração da identidade que a bosta da doença traz, ela já abraçou sem pudores. Em especial fisicamente.

Minha avó era uma mulher alta, mais de 1,75. Hoje é significativamente mais baixa que eu, que tenho 1.61 - e meio.

Era extremamente vaidosa, quase uma fashion victim quando o termo ainda nem existia. Hoje, compra roupas no camelô. Não é falta de dinheiro, não. O senso estético se foi.

Era forte, determinada, uma líder nata, autoritária até. Hoje senta encolhida, chora, sofre, não entende o que acontece ao redor.

Eu? Alguns momentos de angústia. Na maior parte do tempo, assim como a Sra. Seixas, fico é muito puta mesmo. Caralho, dá uma raiva fudida! Não sabe mais quem é como, não diferencia a de b, e leva qualquer filha da puta como anjo, se o cretino tiver um bom discurso.

De mulher poderosa, grande, altiva, se tornou um pinguinho de gente apavorado, que estremece com qualquer palavra em tom mais alto.

Quer saber? Isso dói.

Por mais racionais que sejamos, por mais acesso à ciência, educação, informação... quando o bicho pega no nosso quintal... o que fica é a visão e a percepção da memória afetiva.

Aquela mulher ali não é a minha avó. Minha avó não existe mais.

Aceitar isso é que é a grande foda mal dada da porra da história toda. E a grande "sabedoria", diria O Evoluído.

Mas nesse momento, não sou nada evoluída. Nesse momento estou apenas me entregando ao meu luto antecipado, numa tentativa desesperada de me recompor a tempo de dar a ela um mínimo de amor e carinho que tenho de sobra, que ela merece e que está aqui, represado pelo espanto e pela negação.

24.3.08

A Equilibrista

Pé-antepé, avanço na corda bamba
A corda é o fio de uma navalha
E a vara que deveria me dar equilíbrio
Uma enorme serpente branca.

Não há rede de segurança
Os holofotes me impedem de ver a platéia:
Apenas ouço seu mastigar aflito de pipoca e algodão-doce
Assim como seus corações torcedores

Torcem, em seu íntimo mais profundo
Para que eu caia
Que a serpente me envolva
Quebre meus ossos e me devore
Que o fio da navalha chova meu sangue

Aguardam ansiosamente minha queda no abismo
- não haverá baque no final
Assim como não existe o final da corda
Apenas escuridão e seu balançar

Mas sigo em frente
Firme e compenetrada
Sentindo o gelo do aço sob meus pés.

A serpente me alisa, me provoca e me bolina
Ao mesmo tempo me enforca e me desequilibra,
Enquanto enfia seu corpo escorregadio entre minhas pernas.

Os holofotes operam no auge de sua luminância.
Minhas pupilas já não são visíveis.

Não me pergunto aonde isso vai dar.
Apenas sigo em frente
Firme e compenetrada
Sentindo o gelo do aço sob meus pés.

15.3.08

Poesia, Semana de santa, Falada ou Escrita

Debandada geral dos poetas na Semana de Santa. E uma discussão que corria a boca miúda já faz tempo, se torna, finalmente, um debate de proporções desejáveis.
O poeta deve ser remunerado, deve ter seu trabalho respeitado - e condições de trabalho - e, principalmente, há ou não e por que público para poesia.
Chacal, em seu blog, levanta alguns pontos:

"o rio arde nesse dia do poeta - 14 de março. uma festa que rola em Santa Teresa por ocasião da semana santa gera o maior conflito. contatados alguns dos vários grupos de poesia do rio, apresentaram propostas de trabalho e cachê. a grana, apesar de patrocinadores de peso, segundo a organização, foi encurtada e os projetos receberiam metade do que pediram. a partir do filé de peixe, um a um os coletivos foram se retirando."

"(...) poesia, de uma forma geral, não tem público suficiente para interessar ao mercado. é artesanato e não indústria cultural.
difícil se estabelecer uma tabela como acontece na música, no cinema,
onde associações e sindicatos defendem os direitos dos filiados."

"creio que uma boa causa agora é lutar para a poesia chegar aos alunos de primeiro e segundo grau. a música está entrando novamente no currículo escolar. por que não a poesia contemporânea ? abrir frentes, apresentar projetos de recitais às secretarias de educação. se aliar aos grêmios e a grupos de teatro como o CEP 20.000 fez com o Pedro II e o Colégio Estadual André Maurois."

"sem renovarmos o público de poesia, em breve assinaremos seu atestado de óbito por falta de leitores ou ouvintes."

Leia o texto completo aqui, vale a pena.

Como já disse na troca de e-mails que está comendo solta entre vários poetas e organizadores de eventos de poesia, os dois últimos pontos me falam mais alto: renovação do público e inserção na grade currícular - como está acontecendo com a música. Para mim, dos vários incêndios, esses estão entre os mais devastadores.

Aí vejo surgir entre as várias discussões a velha oposição poesia falada x poesia escrita.

Honestamente, acho que no momento, definitivamente não é uma questão prioritária. Se não tivermos público... que diferença faz?

E realmente prefiro jogar esse papo um pouco mais pra frente.

Mas aqui, fora do debate, no meu espaço públicoparticular, aproveito para dizer que o poeta não tem, obrigatoriamente que ser performático. E que gosto das duas possibilidades. E não acho que um poema bem decorado e apresentado diminua o trabalho de um poeta tímido, que prefere se apresentar apenas nas prateleiras, revistas, sites ou blogs.

Então, vou procurar e colocar aqui já já, um vídeo ótimo, em que Drummond, sem nenhum talento para performances, lê um de seus poemas.

O outro, coloco agora: mostra uma animação ótima de Quadrilha, com narração do poeta. A animação é trabalho de um curso de literatura. Os créditos sobem ao som de Chico, mostrando que poesia não gera só performance. Podemos ir bem além disso. Ou não.



Gosto igualmente das duas. Na verdade, acho essa discussão desestimulante. Mas isso rende outro post, escrito com mais paciência e detalhamento. Boa chuva para todos!

9.3.08

Nossos planos

Aquele café improvisado na beira d'água, aquela manhã linda, linda, lembra? Que não tomamos? E as viagens que não fizemos e os vinhos que não bebemos? E aquela vez que não te fiz um jantar surpresa, lembra? E que você não adorou, você não esperava! E aquela estante que não compramos juntos, que não combinou com a nossa sala e que depois já não cabiam os nossos livros...

E a estante, o jantar, os vinhos, as viagens ficaram pra trás porque eram desimportantes já que os filhos não vieram. Lembra, que lindo, o quartinho que não fizemos? E que não escolhemos juntos cada detalhezinho, cada móbile, cada foto? E o primeiro álbum, lembra? Com as fotos que não fizemos do primeiro banho e da primeira mamada que não aconteceram?

A primeira escritura! Nossa, ainda lembro da roupa que eu estava usando no dia em que não assinamos a primeira escritura do apartamento que não compramos!

Lembra quando não sonhamos, quando não planejamos, quando não realizamos?

Está um dia lindo lá fora. Como o daquele primeiro café improvisado que não tomamos. Verifico se todas as janelas estão fechadas, todas as luzes apagadas. E vou embora, entregando as chaves do apartamento em que não vivemos para o próximo morador.

8.3.08

A porra da vidinha de merda

Joguei a mochila no chão, me esparramei no sofá e apoiei de propósito os pés na mesinha de centro. Por que diabos alguém tem mesinha de centro? Pelo prazer das canelas roxas? Por que é isso, a mesinha de centro é como um quebra-molas no meio da sala. Quebra-canelas. Uma merda. Não sei o que é pior, se a mesinha de centro “assinada” e que por isso ninguém pode chegar perto sem que dona da casa enfarte, ou se a mesinha de centro que serve como suporte para enormes livros de arte que ninguém lê, cuidadosamente escolhidos pelo decorador para que nenhuma visita tenha dúvidas: aquela com certeza é a casa de alguém sofisticado, com cultura. “Com cultura”. Cultura de quê? Vírus?

Apoiei de propósito os pés na mesinha de centro e fiquei esperando ela chegar, eu já não disse pra não por os pés na mesinha de centro, isso não é uma mesinha de centro qualquer, isso é uma Saarinem, ela falou puta. Todo dia eu boto o pé na mesinha de centro e todo dia ela reclama puta por que isso não é uma mesinha de centro, isso é uma Saarinem.

Isso não é uma porra de um museu, eu disse, isso é a minha casa. Todo dia eu respondo a mesma merda. Todo dia a mesma discussão idiota, ela disse, ela não sabia que eu gostava de ter todo dia a mesma discussão idiota porque ela ficava irritada e eu adorava ver ela irritada, era o meu único prazer, então eu me permitia ter esse prazer todo dia.

Isso não é uma porra de um museu, eu sabia que o "porra" era fatal. Ela agüentava que eu me esparramasse no sofá, ela agüentava que eu botasse os pés na maldita saarinem, ela agüentava que eu respondesse com ar de desdém. O que ela não suportava era aquele ‘porra’ no meio da frase, dito preguiçosamente, reforçando o desdém. Porque o ‘porra’ era a confirmação do descontrole dela. Ela não falava porra. Ela berrava porra, ela esguelava porra com a cara vermelha, as veias do pescoço saltadas, olhos esbugalhados, salivando e socando a mesa. O porra, para ela, era a confirmação de que havia perdido a razão e a discussão, aquela partida não era dela, perdeu. Então quando eu falava porra calmo, devagar, olhando o jornal ou limpando uma unha, aquilo era a morte: não era um palavrão, era uma afronta.