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30.3.06

Meus homens

Ele me ninava, fazia desenhos em sua mão e acendia Maria Preta atrás de Maria Preta na porta de casa, no início da noite. Só para mim. Me ensinou a desenhar, desdenhar e infernizar. Ensinou também que homem chora. Ouvia com paciência minhas descobertas, ria dos meus ataques de fúria e de minha guerra diária com o pijama. Eu desenhava um emaranhado de flores e heras que começavam sempre em meu tornozelo e subiam por minhas pernas – e ele dizia que era lindo. E eu confiava cegamente. Hoje manda e-mails desconexos, só fala na primeira pessoa e não sabe quem sou eu. Ele me botava para dormir, hoje é um estranho com quem esbarro pela rua.

Ele era o meu bebê, que nunca foi meu. Dormia atracado com meus cabelos, para ter certeza de que a noite não me tragaria. Me olhava com seus enormes olhos azuis tristes e sorria com aquela boquinha pequena que me tirava o ar. Contava a todos que quando crescesse seria meu namorado. Me beijava sempre, o tempo inteiro, pequenos selinhos sabor chocolate, calabresa, tuti-frutti. Ficava encardido. Nunca cheirava mal. Ainda cheirava como bebê. O meu bebê, que nunca foi meu. Dez anos depois o vejo do ônibus, andando na rua, quase tão grande quanto seu pai. Seus enormes olhos já não são azuis mas continuam tristes. Uma tristeza serena que se esvai com seu sorriso que ainda me tira o ar. Olho pai e filho andando com o mesmo passo, os mesmos trejeitos. Olho o meu bebê. Grande, bonito, distante. Ele não me vê.

Ele invade minha casa, tira sua roupa, toma sua cerveja e me põe nua em seu colo. Não, ele não me come. Me bebe e devora como que em busca de sua "energia vital". Da certeza de estar vivo. Depois, me dilacera falando atrocidades enquanto me acarinha. Quando se cansa da brincadeira veste-se, abandona a lata de cerveja e vai embora. Eu tenho que beijá-lo. Ele consente sem paciência. Quando vai embora, com seus passos firmes e hoje secos, afasta-se com a segurança de quem sabe que não deixa para trás apenas camisinhas usadas, embalagens de Engov e meia lata de cerveja. Sabe que deixa para trás também, junto com esse pequeno amontoado de lixo, um coração acelerado, uma cabeça inflamada e olhos que teimam em se manter secos. Nunca olha para trás.

22.3.06

Da Lua

Me agarro a causas perdidas
Me entrego a amores impossíveis
Busco a bala perdida
Quando só quero vida.

Confusão suicida
Conclusões espermicidas
Relações parricidas
Amizades Fratricidas

E cada passo leva ao abismo
distante com cheiro de absinto
E eu, que nem gosto de absinto?

Sinto muito por toda essa confusão mental
Essa incapacidade de avaliação
Essa leitura equivocada de tudo e de todos.

Meu código de barras se apagou.
Nele não estava o meu preço
Seria fácil demais
Nele estavam minhas coordenadas.

Hoje, observo os ratos que saem dos bueiros
As baratas que avançam na direção de meus pés quase descalços
Sempre cansados
Desvio do mendigo louco, totalmente roto
E me pergunto, quem é o indigente aqui?

Os livros na estante esfregam na minha cara:
Conhecimento e leitura só trazem sofrimento.
Não leia! Vá à praia, curta as Paineiras, beije na boca
Caia na noite, viva a balada.

Ansiolíticos, hipnóticos, álcool, ervas.
Consuma sua mente.
Torne-se um computador,
Uma Tv
Um rádio: um terminal burro, que apenas defeca informações.
Sem troca, sem interações.

Vamos alimentar os bueiros com ratos e baratas.
Vamos jogar o lixo mal fechado. A indigência precisa comer.
Precisa catar a comida no lixo: é a dignidade que lhe resta.
Caçadores de seus próprios alimentos.

E eu ouço Thelonious. Why Monk?
E eu ouço Tom Waits. Why Waits?
Wait for me, my misery.

Preciso de sapatos novos
Colo, cafuné e uma boa foda.
Preciso de menininhos deslumbrados
Que não perguntem nada.

Apenas me sirvam, me sirvam, me sirvam.
Meus servos
Meus escravos
Com seus cravos, espinhas e ar adolescente.

O voo de Ícaro.
A poeta se esfacelou no asfalto.
O letrista poetizou, sinalizando a opção por virar estrela.
Diz que optando por dançar, viramos constelação.

Constelações são estrelas.
Estrelas são astros que tiveram luz própria
mortos há séculos e séculos atrás.
Luz falsa, ouro de tolo.

E os cavalos passam por cima de nós
A poeira levanta
E saímos ilesos.

Somos ilusões.
Cerveja, cachaça, red label.
Trepada, Ressaca, Luz ofuscante na calçada.

Vamos meu anjo,
Fazer amor até amanhecer.
Vamos meu sacana
Fuder até a noite morrer.
Vamos meu nego
Trepar até adormecer.

O sol não brilha para mim.
O astro rei me diz
E eu já sei
Sou posse da lua.

Por isso ando nua,
Sou carne crua
Apodrecendo ao luar.
Mas sempre sua.

20.3.06

A Amante

Sou Amante da Poesia
Namorada da Palavra
Trepo com as Letras todos os dias

Fonemas me fodem
A Gramática me cavalga
E põe o Poema em pauta

Me domina o Léxico
Me entrego a cada sílaba
Cidadã da ilha de Lesbos

Sou Amante da Palavra
Da Poesia, da Prosa e da Rima.
Trepo com as letras todos os dias.

17.3.06

Acasalamento

Palavras podem ferir como aço
Estiletes de letras
Cortes proferidos por fonemas

Palavra escrita
Palavra no telefonema
Palavra na tela do cinema

Palavra ao pé-do-ouvido
Perigo, perigo, perigo
A palavra escapou!
Fugiu da minha boca
E expôs o pensamento!

Sacramento e sacrilégio:
Saca?
Tudo farinha
Do mesmo saco.

Ou não. Depende.
Vamos trocar,
experimentar novidade:
No lugar de Sacramento
Comunhão.
No lugar de Sacrilégio
Cumplicidade.
Argamassa: União.

Palavras podem acarinhar
toque de letras
perfume de fonemas

Palavra escrita
Palavra no telefonema
Palavra na tela do cinema

Palavra ao pé-do-ouvido
No meio da cama
A palavra escapou!
Fugiu das bocas
Abraçou os corpos e escreveu:
ACASALAMENTO

15.3.06

Casamata

palavraspalavraspalavras compulsivamente palavras. Palavras como tijolo cimento concreto. Palavra-casamata.

Palavras como fonemas, palavras não significante, palavras não significado.
Palavras esconderijo atrás do léxico, da gramática, da língua pelo ritmo. Palavra não significante, palavra não significado.

Ritmo-som-ritmo. Fonética. Palavras compulsivamente palavras, como máscara, como esconderijo, como personagem. Palavra não autor. Palavra pela palavra.
Palavra mentira palavra ilusão palavra desejo palavra defesa.

Palavras palavras palavras compulsivamente palavras.

E o autor, cadê?

12.3.06

A vaca da minha irmã nunca leu meu blog.
Para que minha mãe lesse, tive que obrigar.
Para meu pai Não ler, tenho que rebolar.
Não quero que ele leia, não quero que ele me conheça, que saiba onde estou, o que faço, onde e com quem vou.

Sugiro que se fodam todos.
Sim, não sou convencional. Mas isso não significa que eu não tenha os mesmos desejos e anseios atávicos de toda a humanidade. E isso também não dá o direito à ninguém de me pré-julgar e de fingir que não vê minhas qualidades - sim, eu tenho qualidades e não estou falando das literárias. Tenho mil defeitos, mas sou generosa, leal e defendo com unhas, dentes, palavras e ações os meus amigos e os meus amores. A recíproca não é verdadeira.

Sim, estou mal-humorada, mas com toda razão para isso.

Sim, estou me perguntando se vale à pena.
Por favor, alguém, se for capaz, me prove que vale.
Eu sou o fardo que ninguém quer carregar

3.3.06

Momento Umbigo: Priscila Andrade na visão de Bruno Cattoni

A Doce Visão da Luz do Inferno

Eu vejo uma virgem coberta de feridas
Que aquecem do frio no breu da manhã
E, pelos olhos dos tubarões, sua imagem
De ferro Cru, na tempestade devora e apavora
Não sei se devo prateá-la ou enferrujá-la
Me arvorar a defendê-la dos auto-coices
Ou encher sua vulva de bolas de mármore.

Eu vejo uma sílfide sem meias-medidas
Que imita o abandono cuspindo porra
Vomita pra dentro a palavra dos outros
Regurgita falos batidos no liquidificador
E pisoteia úlceras que extirpa a dentadas
E hasteia bandeiras rubras escrito "Fuja!"
Depois entrega a faca cega que amolou
Para que raspem a crosta funda que ama.

Eu vejo um estacionamento de corações
E um decote retrátil ao comando remoto
Onde estouram cachoeiras de lama podre
Que soterras as rochas de leite vencido
Eu vejo o cabo das catástrofes no coldre
E uma doce matricida abortando o caos
Que brota irrefreável ao mínimo tropeço.

Eu vejo o mesmo fim que nunca se repete
E os princípios coalhados numa cuia velha
Uma órfã sem dedos apoiando um mastro
Estandarte roto e sujo onde não se lê "Paz"
Uma horda de retirantes nus, exoftálmicos,
Que pára frente ao abismo e atira acordeões
Desce para buscá-los e nunca mais retorna.

Eu vejo agora que anoitece reabertas chagas
Ouço cânticos roucos que sangram o sereno
E o colo da sílfide se dobrando sobre o seio
E o peito desarmado sobre o colo das coxas
O gás carbônico fugindo pelos joelhos unidos
E os calcanhares disparando e batendo a terra
Ensebados da placenta ácida dos desumanos.

Que gosto tem a boca sonâmbula pelas escadas?
Escorre da memória entrevada essência de maçã
E quando as faces descoram e os lábios somem,
Um toldo de lona, da lona dos nocautes sem dor,
Avançam como um cúmulo-nimbo gigantesco
Logo acima das pálpebras encouraçadas da bela
E as palavras desembarcam na indolente surdez.

E seus gumes cinzelam num monolito, feito do lixo
Dos lares felizes, um ícone inútil de amor ao ódio
Ao ódio arrependido de quem ficou para trás e só
E, para passar o tempo com o ferro cru da imagem,
Arranca tiras de tecido necrosado e enrola-os bem
Para torná-los cordas que, presas nos pessegueiros,
Vibram melodiosamente enquanto as copas bailam.

Para ler mais Bruno Cattoni, procure um de seus cinco livros em qualquer boa livraria. Especial atenção para Osso (na cabeceira das avalanches) , editora 7 Letras.