Estou preparando o meu primeiro livro individual, e vai aqui uma amostra. O objetivo é mesmo saber como impacta para vocês - não que isso vá necessariamente gerar alguma alteração no projeto. Quem já me conhece, sabe que a mão é delicada, mas firme. Diz o Ramon que a minha poesia é psicossomática. Tenho pensado a respeito. Opinem. E bom fim de semana!
Ah, se encontrarem links quebrados no menu à esquerda é porque estou dando uma geral no blog, jogando fora algumas coisas que já não me dizem nada e que acho que se perderam no tempo. E mudando de lugar outras que ganharam nova posição nessa minha cabeça psicotrópica. Fiquem a vontade.
Encefalocardia
por Priscila Andrade
|equilibrismo|
A Equilibrista
A equilibrista acordou as duas e vinte e duas da manhã
Coração aceleradoaceleradoacelerado
E falta de ar
Não conseguia dormir de novo
Insônia (insônia?)
O Fauno dionisíaco desarrumou seu armário
Tirou do lugar cada um de seus pertences mais vitais
E jogou a lanterna fora
Não havia tempo para rearrumar ou mesmo procurar.
O espetáculo recomeçava
O nome do jogo agora era Risco
Insônia (ansiedade?)
A equilibrista se olhou no espelho
“Bacante...” dizia por suas costas a entourage do circo
“Bacante, libertina.”
Seus olhos falavam a tristeza e o canto da boca
Um quase sorriso sarcástico
E certo deleite
O espelho mostrava as sobrancelhas franzidas
A boca contrariada
O olhar espumante
A moça não gostava de perder o controle
Olhou o armário.
Vara, rede de segurança, cabo espesso de aço:
Nada.
No trailer ao lado
Dormia tranqüilo o Fauno
Olhou a cama
Insônia?
Ansiedade?
Entendeu o que já sabia: desejo.
Desejo no trailer ao lado.
Para satisfazer seu desejo (desejo?)
A equilibrista terá que andar no fio da navalha
Se equilibrar com uma enorme serpente branca
E encarar os holofotes sem rede de segurança.
Será que ela vai? Ela sabe a resposta.
A Equilibrista, Movimentos Arriscados
— Pé ante pé, avanço na corda bamba
A corda é o fio de uma navalha
E a vara que deveria me dar equilíbrio
Uma enorme serpente branca.
Não há rede de segurança
Os holofotes me impedem de ver a platéia:
Apenas ouço seu mastigar aflito de pipoca e algodão-doce
Assim como seus corações torcedores
Torcem, em seu íntimo mais profundo
Para que eu caia
Que a serpente me envolva
Quebre meus ossos e me devore
Que o fio da navalha chova meu sangue
Aguardam ansiosamente minha queda no abismo
- não haverá baque no final
Assim como não existe o final da corda
Apenas escuridão e seu balançar
Mas sigo em frente
Firme e compenetrada
Sentindo o gelo do aço sob meus pés.
A serpente me alisa, me provoca e me bolina
Ao mesmo tempo me enforca e me desequilibra,
Enquanto enfia seu corpo escorregadio entre minhas pernas.
Os holofotes operam no auge de sua luminância.
Minhas pupilas já não são visíveis.
Não me pergunto onde isso vai dar.
Apenas sigo em frente
Firme e compenetrada
Sentindo o gelo do aço sob meus pés.
|Paraeles|
Paraeles
Paraty, não para mim
Para eles, não para nós
Paraty, com sua poesia construída
Me expulsa
Me agride
Esse lugar não me pertence
Devolvo os desaforos
Deixando em cada pedra
Ou fragmento de terra do centro histórico
Um pouco de mim
Fios de cabelo
Pedaços de unhas ruídas
Cutículas arrancadas a dentadas
Fazendo gotejar o sangue
E o sangue se mistura a terra
Estou vingada
Paraty e eu agora somos uma só
Deixo ali minha marca
Meu DNA
Meu sangue literal
Faço o mesmo na cidade dos locais
Na Paraty de verdade
Que não atrai festivas, jornalistas ou turistas
A Paraty pária, vergonha
Subúrbio abortado do Rio
Mas a cidade entende e entra no jogo
E começa a me devorar
Consome meu sono
Rouba-me o calor do corpo
Devora minhas energias
Deixa apenas
Propositalmente
Uma certa melancolia
A cidade me expulsa
Guardo de lá apenas
Beijos roubados
Olhares furtados
Batimentos acelerados
E uma certa falta de ar
Pequenas transgressões
Públicas, íntimas e secretas
Apenas nós, transgressores
E a cidade sórdida, cretina
Apenas nós sabemos
Mas a cidade não pode falar
|natureza|
Fênix
Observo a poeira em suspensão
No feixe de luz que atravessa o quarto.
Assim como eu, mormaço.
Suor escorrendo: tátil.
Feixe de luz: intangível.
Observo a poeira em suspensão
No feixe de luz que atravessa o quarto.
Assumo-o, tomo as rédeas de mim
E me encaro.
Escancaro a janela:
Luzes solares de março.
O cheiro de dama-da-noite no quarto.
De Tangerina, as mãos.
Dos seus cabelos, narinas.
A vida recomeça.
Casulo
Mudo de pele a cada manhã
abandono a alma pelo caminho toda a tarde
e renasço ao fim do dia
Os ânimos dançam uma ciranda louca
tribal e selvagem
E eu apenas sinto
como um reflexo tardio
os seus cabelos nas minhas mãos
E me deixo levar pelo vento
como folha seca em prenúncio de tempestade
Retomo a alma no caminho de casa
Sempre acho que ainda não é tarde.
Da Lua
Me agarro a causas perdidas
Me entrego a amores impossíveis
Busco a bala perdida
Quando só quero vida.
Confusão suicida
Conclusões espermicidas
Relações parricidas
Amizades Fratricidas
E cada passo leva ao abismo
distante com cheiro de absinto
E eu, que nem gosto de absinto?
Sinto muito por toda essa confusão mental
Essa incapacidade de avaliação
Essa leitura equivocada de tudo e de todos.
Meu código de barras se apagou.
Nele não estava o meu preço
Seria fácil demais
Nele estavam minhas coordenadas.
Hoje, observo os ratos que saem dos bueiros
As baratas que avançam na direção de meus pés quase descalços
Sempre cansados
Desvio do mendigo louco, totalmente roto
E me pergunto, quem é o quem aqui?
Os livros na estante esfregam na minha cara:
Conhecimento e leitura só trazem sofrimento.
Não leia! Vá à praia, curta as Paineiras, beije na boca
Caia na noite, viva a balada.
Ansiolíticos, hipnóticos, álcool, ervas.
Consuma sua mente.
Torne-se um computador,
Uma TV
Um rádio: um terminal burro, que apenas defeca informações.
Sem troca, sem interações.
Vamos alimentar os bueiros com ratos e baratas.
Vamos jogar o lixo mal fechado. A indigência precisa comer.
Precisa catar a comida no lixo: é a dignidade que lhe resta.
Caçadores de seus próprios alimentos.
E eu ouço Thelonious. Why Monk?
E eu ouço Tom Waits. Why Waits?
Wait for me, my misery.
Preciso de sapatos novos
Colo, cafuné e uma boa foda.
Preciso de menininhos deslumbrados
Que não perguntem nada.
Apenas me sirvam, me sirvam, me sirvam.
Meus servos
Meus escravos
Com seus cravos, espinhas e ar adolescente.
O vôo de Ícaro.
A poeta se esfacelou no asfalto.
O letrista poetizou, sinalizando a opção por virar estrela.
Diz que optando por dançar, viramos constelação.
Constelações são estrelas.
Estrelas são astros que tiveram luz própria
mortos há séculos e séculos atrás.
Luz falsa, ouro de tolo.
E os cavalos passam por cima de nós
A poeira levanta
E saímos ilesos.
Somos ilusões.
Cerveja, cachaça, Red Label.
Trepada, Ressaca, Luz ofuscante na calçada.
Vamos, meu anjo,
Fazer amor até amanhecer.
Vamos, meu sacana
Foder pela noite, morrer.
Vamos, meu nego
Trepar e adormecer.
O sol não brilha para mim.
O astro rei me diz
E eu já sei
Sou posse da lua.
Por isso ando nua,
crua como carne
Apodrecendo ao luar.
Sempre sua.
Orquídea
Minha pele se rasga da nuca ao cóccix
Dando liberdade a uma gigantesca lâmina
De cartilagem e penugem.
Meu peito se rasga
E dele saem em vôo tumultuado
Um enxame de vespas
Que zunem, zunem, zunem
Minhas veias ultrapassam o limite
Das pernas e se tornam raízes grossas
E firmes, que me prendem ao solo.
Nesse momento, meu tronco se solta
E alço vôo, com meus braços que já viraram asas.
Do alto observo o bailar das nuvens
E o gorjeio dos automóveis
As penas das asas se soltam
Uma a uma
Transformando-se em pétalas de orquídea
Que caem docemente pelo chão.
Outono
Acarinho as cabeças de minha cria natimorta
e ouço seus chorinhos miúdos.
Sinto o leite talhado escorrendo
de meus seios inchados e doloridos.
O rio logo se forma,
com seu chão lodoso
e pequenos redemoinhos
que tentam me sugar.
Meus pequenos natimortos
sugam meu leite talhado.
Pelo rio, boiando, passam
folhas secas, frutos maduros
que o vento derrubou
e algumas flores.
O sol se põe.
Nino a cria.
Adormeço também.
|corpo|
Autofagia
Deviam me amarrar
com as minhas tripas
Em um tronco feito
com meus ossos
Me alimentar apenas
com minhas carnes
Matar minha sede
com meu sangue
Assim,
e somente assim
Me realimentaria
de mim mesma
E voltaria
a me reconhecer
no espelho
Lago Amarelo
Abscesso profundo
Lago espelho amarelo
Onde mergulho
E te espero
Meus tecidos
Esgarçados pelos apóstemas
Transformam meu corpo em vestidos
A cada edema nascido
Boneca de trapo
Vestidos de retalhos
Danço no espelho amarelo
Onde mais uma vez te espero
Arcabouço
Vertebroso e acéfalo
Meu corpo decomposto se arrasta
Se esgueira por vielas
Só para provar meu amor por você
Vértebra a vértebra
Vão todas ficando pelo chão
Caminho de Joãozinho e Maria
Formado não por doces ou pães
Mas por meus restos mortais
Meu amor não
Meu amor por você se mantém
Calcificado, indelével
Aqui neste arcabouço
Onde pretendo te reter
Ponto Morto
Pisar nas feridas
Arrancar as peles soltas
Morder a língua
Arrancar as gazes envoltas
Lamber as feridas
Arrancar os olhos
Chupar o sangue
Regurgitar a bílis
Não toco piano
Toco tendões
Comer a própria carne
É minha única tentação
O Novo
Sístole, assístole
Tum-tum
Tum-tum
Coraçãotaquicardia
Mas isso,
Isso foi ontem...
Hoje, quando te vê
Ele já nem bate
Apenas um leve pulsar delicado,
Doce, tranqüilo e discreto.
Por outro.
Encefalocardia
Vermes em movimentos orgiásticos
Latejam em meu crânio
Substituindo a taquicardia
Encefalocardia
Ecefalolatente
Lateja, latejam
As têmporas expõem o
Movimento interno
O coração, essa bomba hidráulica
Tolamente romantizada
Necrosou
O céu da minha boca nublado
E os olhos de sal
E as intempéries saudosas
Que eu apenas calei.
Calei os braços, as pernas e os cotovelos
De lã era o novelo em que me protegi
No meu silêncio.
Ssssssssssssss
S.i.l.ê.n.c.i.o.
Digestão
Elaboração dos alimentos nas vias digestivas para depois ser deles assimilada a parte útil e expelidos os resíduos.
Útil: que ou quem tem ou pode ter algum uso. Proveitoso.
Expelido, expelir: lançar fora com violência, expulsar, ejetar. Expectorar. Lançar de si. Proferir com ímpeto.
Resíduos: resto. Fezes, borra, sedimento.
Neste momento estou digerindo você.
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