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27.10.04

Não Voe Gol. Gol Contra

Dia 25 de outubro de 2004 embarquei no vôo 1605 da Gol, Salvador-Rio. Dez minutos depois da decolagem uma sensação estranha de que havia algo errado. Não deu tempo de terminar o pensamento: em segundos a aeronave escureceu, as máscaras de oxigênio caíram sobre nossas cabeças, o cheiro de queimado tomou conta do ambiente, a temperatura subiu significativamente e toda a equipe de bordo surgiu do nada gritando para que todos colocassem as máscaras. Tudo ao mesmo tempo.

Foi tão rápido que até entender o que estava acontecendo já tinha levado três berros de uma comissária nos ouvidos. A máscara não se soltava e quando soltou, bem... não funcionava. As outras três ao meu alcance também não. Comecei a pedir ajuda da comissária que estava mais perto - e percebi que não era a única. A maioria das máscaras não estava funcionando, ou não funcionava satisfatoriamente. A comissária foi grosseira e impaciente. E não ajudou.

Ninguém explicava nada, os passageiros em pânico, eu inclusive e, confesso, principalmente. Depois de um típico ataque de pelanca de outra passageira a equipe de bordo que inicialmente explicou tudo como um acidente ("as máscaras não deviam ter caído, é que alguém acidentalmente esbarrou no alarme, e quando o alarme é acionado elas são liberadas) mudou sua versão. Havia uma falha na pressurização da cabine, ou seja, estava acontecendo uma despressurização da cabine. Continuávamos no escuro, a aeronave cada vez mais quente e instável. Os comissários começaram a se contradizer até que sumiram todos.

Foi com o ouvido quase explodindo de dor que ouvi do comandante (é isso mesmo, comandante?) que havia uma falha na pressurização da cabine e voltaríamos imediatamente para salvador.

Em Salvador um funcionário não identificado queria convencer os passageiros de que após uma rápida manutenção poderíamos reembarcar. NO CU, PARDAL! Fui para um hotel e embarquei no dia seguinte num vôo da Varig. Os custos correram por conta da Gol.

Mas ficam aqui as seguintes colocações:
- Manutenção deveria ser regular e preventiva e não corretiva, certo?
- As máscaras de oxigênio deveriam estar TODAS funcionando perfeita e plenamente, não é mesmo?
- A equipe de bordo deveria sim ser firme, mas deveria também, mais do que nunca, ser hábil em acalmar, tranqüilizar pessoas que estavam naquele momento se imaginando churrasquinho no fundo do mar, não é mesmo?

Finalizando: nenhuma satisfação foi dada.

Em palestra recente na CCFB, um publicitário palestrante falou durante sua apresentação que a Gol até hoje não pagou a logomarca criada por eles. E que vários outros fornecedores estão até hoje com suas faturas em aberto. É verdade? Não sei. Mas considerando as desventuras do vôo (vôo?) 1605, dá para pensar no assunto...

11.10.04

Fernando Sabino

Um soco na boca do estômago, um chute no saco. Enquanto me recomponho, dou passagem para o mestre:

'A Última Crônica'*, de Fernando Sabino

"A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.

Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.

Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.

São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "Parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido - vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.

Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso."

* Crônica publicada no livro "A Companheira de viagem" (Editora Record, 1965)