A Doce Visão da Luz do Inferno
Eu vejo uma virgem coberta de feridas
Que aquecem do frio no breu da manhã
E, pelos olhos dos tubarões, sua imagem
De ferro Cru, na tempestade devora e apavora
Não sei se devo prateá-la ou enferrujá-la
Me arvorar a defendê-la dos auto-coices
Ou encher sua vulva de bolas de mármore.
Eu vejo uma sílfide sem meias-medidas
Que imita o abandono cuspindo porra
Vomita pra dentro a palavra dos outros
Regurgita falos batidos no liquidificador
E pisoteia úlceras que extirpa a dentadas
E hasteia bandeiras rubras escrito "Fuja!"
Depois entrega a faca cega que amolou
Para que raspem a crosta funda que ama.
Eu vejo um estacionamento de corações
E um decote retrátil ao comando remoto
Onde estouram cachoeiras de lama podre
Que soterras as rochas de leite vencido
Eu vejo o cabo das catástrofes no coldre
E uma doce matricida abortando o caos
Que brota irrefreável ao mínimo tropeço.
Eu vejo o mesmo fim que nunca se repete
E os princípios coalhados numa cuia velha
Uma órfã sem dedos apoiando um mastro
Estandarte roto e sujo onde não se lê "Paz"
Uma horda de retirantes nus, exoftálmicos,
Que pára frente ao abismo e atira acordeões
Desce para buscá-los e nunca mais retorna.
Eu vejo agora que anoitece reabertas chagas
Ouço cânticos roucos que sangram o sereno
E o colo da sílfide se dobrando sobre o seio
E o peito desarmado sobre o colo das coxas
O gás carbônico fugindo pelos joelhos unidos
E os calcanhares disparando e batendo a terra
Ensebados da placenta ácida dos desumanos.
Que gosto tem a boca sonâmbula pelas escadas?
Escorre da memória entrevada essência de maçã
E quando as faces descoram e os lábios somem,
Um toldo de lona, da lona dos nocautes sem dor,
Avançam como um cúmulo-nimbo gigantesco
Logo acima das pálpebras encouraçadas da bela
E as palavras desembarcam na indolente surdez.
E seus gumes cinzelam num monolito, feito do lixo
Dos lares felizes, um ícone inútil de amor ao ódio
Ao ódio arrependido de quem ficou para trás e só
E, para passar o tempo com o ferro cru da imagem,
Arranca tiras de tecido necrosado e enrola-os bem
Para torná-los cordas que, presas nos pessegueiros,
Vibram melodiosamente enquanto as copas bailam.
Para ler mais Bruno Cattoni, procure um de seus cinco livros em qualquer boa livraria. Especial atenção para Osso (na cabeceira das avalanches) , editora 7 Letras.
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