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31.5.16

A casa dorme, eu não.

Insonia

A pata da gata na minha cara. Ele ronronando ao lado. Suspirinhos peludos atados aos meus pés. Silêncio de grilos e folhas secas caindo. A casa dorme, ressona, com respiração profunda e compassada. Eu não. Ele dorme tranquilo, a gatinha tem pesadelos, o gatão acha que é hora de brincadeira. Eu não encontro o botão de desligar.

Mas já deixei para trás o noticiário, a maledicência nas salas de espera, os comentários medievais e hidrófobos nos curtos trechos dentro de um ônibus preguiçoso e trôpego.

Já deixei para trás os trolls, os hatters, os odiosos, os medíocres, os revoltados on e off line.

Agora somo só eu e você, insônia velha de guerra, embebida em zolpidem, rindo litros do hemitartarato. Só observo. Quem sabe se eu ficar bem quietinha, se eu respirar miúdo, se eu só pela metade? Se eu só? Se eu? Bem quietinha, fingindo dormir. Quem sabe você acredita? Quem sabe?

26.5.16

Estupro não é piada




Uma adolescente de 16 anos foi estuprada por um grupo de homens no Rio de Janeiro. O vídeo do estupro foi compartilhado em redes sociais e os comentários variavam entre piadas e acusações contra a vítima. A vítima seria culpada pela agressão sofrida. O caso ainda está em investigação.

Entre os vários problemas que a notícia aponta, muitos da esfera criminal, escolhi um para falar sobre. A vítima e a postagem de um homem afirmam que foram mais de 30 envolvidos. Cultura de estupro é isso. Mais de 30 homens e ninguém sequer cogitou a possibilidade de estar cometendo um crime. Poderia falar sobre a cultura do estupro.

Poderia falar sobre a falta de ações eficientes e regulares para coibir o crime de estupro, sobre como culpam sempre a vítima, sobre como a questão é minimizada. Poderia falar sobre a tranquilidade com que pessoas presenciam assédios nos ônibus, trens, ruas, escolas, casas e não impedem. Poderia, ainda, falar sobre o fato de 30 homens terem escolhido praticar um crime. Um crime contra uma pessoa incapacitada de se defender, uma mulher dopada. Um crime que não fala só de gênero, fala de ódio, de subjugar, de humilhar. Um crime que passa por tirar do outro as escolhas, portanto, a autonomia. Um crime mais que violento, um crime autoritário. Homens violentos, perigosos, medíocres e pequenos: precisam da vítima sedada para se sentirem poderosos e no controle. Porque sim, trata-se também de controle. E porque esta não é a única vítima sedada. Quando mulheres não denunciam os estupros que sofrem por vergonha, é porque estão sedadas. Quando pessoas não impedem, é porque estão sedadas. Poderia falar da sociedade doente da qual fazemos parte, que naturaliza o estupro, minimiza e culpa a vítima. Acha a minissaia uma ofensa passível de punição através da prática de um crime. Use uma minissaia e seja sentenciada a sofrer um estupro. Está aí: poderia falar sobre as roupas como instrumento de controle e submissão da mulher. Mas escolhi falar das piadas.

Sim, escolhi falar das piadas. O que leva as pessoas, homens e algumas mulheres também, a acharem que estupro é piada? Que não só não há problemas em cometer estupros e estupros coletivos contra vítimas sedadas, como também achar que é natural fazer piada? É razoável imaginar que isso seja fruto de uma sociedade machista e fortemente influenciada por vertentes religiosas cada vez mais fundamentalistas. Algumas, inclusive, nem podem ser consideradas como religião, são na realidade empresas com lucratividade alta, abençoadas pela isenção fiscal – que deveria acabar já, seria uma excelente fonte de recursos para saúde, educação e cultura.

É neste cenário, alimentado por propagandas idealizando a mulher como “boazuda” disponível ou princesinha submissa, que uma presidência interina extingue o Ministério das Mulheres, Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos. Essa extinção é a um só tempo alimento e reflexo desse cenário. Assim como o atual ministério: sem mulheres, sem negros, sem representatividade. Um país que não se importa com a integridade física de suas mulheres não pode mesmo se importar com o fato de agressões virarem piada.

Enquanto terminava de escreve esse texto vi a notícia de mais um estupro coletivo, dessa vez no Piauí. A situação é gravíssima. Não é mais possível se omitir em relação à violência contra a mulher. Não é mais possível permitir ou relevar discursos que apontam feminismo como opressão ao homem e feministas como mulheres mal amadas (seja lá o que isso signifique), homossexuais (qual o problema?), que não se depilam (qual o problema?) e que praticam linchamento virtual (quem faz linchamento virtual não é feminista, é linchador). Não é mais possível permitir que as pessoas, desconhecendo o que é o feminismo, propaguem conceitos errados. Não é mais possível.

Vou me repetir: quem é da escrita, escreva. Quem é da foto, fotografe. Quem é da música, cante. Mas aja. Positivamente, amorosamente, incisivamente. Mas aja.